De ‘possuídos’, alienados e loucos para pacientes neurodivergentes: exposição retrata evolução do tratamento de doenças mentais

O 18 de maio é destinado ao Dia Nacional da Luta Antimanicomial, que se fortaleceu na segunda metade do século XX e segue até os dias atuais em busca de respeito e tratamento digno aos pacientes neurodivergentes. Veja como eram aparelhos de lobotomia usados em pacientes com doenças mentais
A Luta Antimanicomial no Brasil ganhou força na segunda metade do século 20, impulsionada pelo processo de redemocratização após a ditadura militar. O movimento é lembrado anualmente em 18 de maio, data que marca o Dia Nacional da Luta Antimanicomial.
Para abordar o tema, o g1 elaborou uma linha do tempo sobre o tratamento da loucura e destaca figuras importantes desse movimento, como Juliano Moreira e Nise da Silveira.
No Rio, a Colônia Juliano Moreira, referência histórica na saúde mental e maior instituição psiquiátrica da cidade, completa 100 anos em 2025, celebrados com uma exposição que resgata sua memória (veja mais detalhes abaixo).
Possessões e exorcismos
Em entrevista ao g1, o psiquiatra Hugo Fagundes, superintendente de Saúde Mental, da Prefeitura do Rio, relembra os principais marcos da história da psiquiatria no país e destaca o longo período em que pacientes foram submetidos a abordagens agressivas e tratamentos inadequados.
Ele explica que, ao longo da história, diferentes termos pejorativos foram usados para se referir a pessoas que pensavam de forma considerada "não normal", como "loucos", "alienados" e "desprovidos de razão".
Em determinados períodos, segundo ele, chegou-se a atribuir essas condições a possessões demoníacas.
De ‘possuídos’, alienados e loucos para pacientes neurodivergentes
Arte g1
O especialista explica que a mudança de visão sobre os pacientes começou na Revolução Francesa, mas que até então eles eram tratados principalmente sob uma perspectiva religiosa.
“Até a Revolução Francesa, entendiam a loucura como uma possessão. Na Idade Média, as cidades pegavam os loucos e botaram em um navio para descer o rio para outra cidade. Eram experiências de muita violência porque entendiam como possessão demoníaca e sempre a construção da experiência humana com a loucura era entendida como um desequilíbrio e uma desrazão", afirma.
"Era uma ideia de que o indivíduo era despossuído de razão, seja porque alguma coisa incorporava nele, ou porque ele degenerava, seja porque ele desequilibrava de humor, enfim."
Lobotomia e eletrochoques
A Revolução Francesa acontece no século XVIII e os intelectuais passam a enxergar a loucura como uma doença mental, conforme explica Fagundes. A partir desse momento, é criada a psiquiatria e as abordagens que seriam usadas com os loucos: hospitais psiquiátricos com áreas verdes, momentos de conexão com a natureza e o próprio eu.
Aparelho de lobotomia em exposição no Museu Bispo do Rosário
Thaís Espírito Santo/g1
“A descrição do tratamento até então era de convencer o sujeito da falta de razão que ele tinha nos seus pensamentos, então era moral. A ideia era de um lugar muito bom, com contato com a natureza, para conseguir convencer a pessoa a sair desse lugar. As intervenções físicas vão acabar acontecendo a partir daí”, conta.
Com as intervenções físicas, começa um processo de tortura dos pacientes, explica o especialista.
“A gente tem propostas das mais absurdas: cadeira giratória, banhos gelados, toda sorte de violência para tentar criar soluções para resolver. Ao ponto que identificavam que pessoas delirantes que tinham uma febre muito alta, melhoravam. Então, houve um determinado momento que inocularam malária nos pacientes. Na malarioterapia, você lidava com a febre alta", afirma.
"A mesma coisa com crise convulsiva, então falavam: ‘vamos induzir crises’. A eletroconvulsoterapia nada mais é do que uma corrente elétrica de baixa frequência nas têmporas para de alguma maneira induzir uma crise convulsiva. São sessões de eletrochoque, mas os pacientes melhoravam e voltavam a ter surtos depois”, continua Fagundes.
Aparelhos de eletrochoques em exposição no Museu Bispo do Rosário
Thaís Espírito Santo/g1
Foi nessa época que os pacientes começaram a ser submetidos a lobotomias, que eram cirurgias onde com a abertura do cérebro, cortavam-se conexões de hemisférios para reduzir os pensamentos e reações dos doentes.
“Nisso, com a ideia do hospital psiquiátrico que seria quase um spa, o que se montou foram estruturas de confinamento de pessoas que eram sequestradas, era um cativeiro e muito sofrimento. A história da psiquiatria é de muita violência. Qualquer movimento de rebeldia de um sujeito era tido como um sintoma agudo do seu agravamento mental. Então para as mulheres, por exemplo, não tenho dúvida de que as experiências eram pavorosas”, destaca.
Brasil e o Hospital Nacional dos Alienados
A situação começa a mudar quando D. Pedro II cria o Hospital Nacional dos Alienados, onde hoje funciona o Palácio Universitário da UFRJ, na Praia Vermelha, Zona Sul do Rio. Na segunda metade do século XVIII, um psiquiatra baiano se destaca: Juliano Moreira.
“E aí tem uma figura muito interessante, que é um psiquiatra baiano, negro, de origem simples, que falava seis línguas. Juliano Moreira vem para o Rio em uma articulação política e acaba assumindo o papel de responsável pela saúde mental no Distrito Federal, que por sua vez era o responsável pela política de saúde mental do país inteiro."
Juliano Moreira defendia um tratamento menos intervencionista do ponto de vista físico e mais acolhedor em termos mentais. Com o aumento da demanda, o setor de internação do Hospital Nacional dos Alienados começou a ficar sobrecarregado.
O governo passou a criar colônias de alienados. Primeiro, no Engenho de Dentro, seguido pela Ilha do Governador — onde posteriormente foi instalada a Base Aérea do Galeão — e, por fim, na antiga Fazenda do Barão da Taquara, hoje conhecida como Colônia Juliano Moreira, um dos últimos manicômios a serem desativados no Rio de Janeiro.
No entanto, até então, o tratamento aos pacientes ainda era marcado por muita agressividade.
“Na Colônia tem histórias absurdas, como de uma das companheiras de um sheik que veio para o Rio e ela teve uma crise convulsiva no Centro, desgarrada das pessoas e como ela só falava árabe, foi trazida para cá e morreu aqui."
"A história de sofrimento é absolutamente incomensurável, essas pessoas perderam a juventude, os dentes, os amigos, os laços sociais, e a gente foi construindo caminhos para desmontar isso aqui”, conta Fagundes.
A luta antimanicomial e o legado de Juliano Moreira
“Quando se fala de luta antimanicomial, o primeiro nome que as pessoas falam é Nise da Silveira, mas ela é uma história que vem muito depois. A luta começou no final dos anos 70, com uma geração de médicos na efervescência da luta pela anistia, da luta pela redemocratização do país, para derrubar a ditadura”, afirma.
O avanço da luta antimanicomial ganhou força após a chegada do psiquiatra italiano Franco Basaglia, que fica horrorizado com as condições encontradas em um manicômio de Barbacena (MG). Basaglia chega a definir o lugar como “um campo de concentração de loucos”.
Doutor Juliano Moreira representado em pintura no Museu Bispo do Rosário
Thaís Espírito Santo/g1
“Ele insufla um movimento, que cresce como um movimento social e não mais um movimento de profissionais da saúde. Na verdade, faz parte da pauta de garantia de lutar por democracia, por justiça social, por assim, por humanizar o cuidado e pela construção do SUS”, afirma o médico.
Naquele período, o Brasil atravessava os anos finais da ditadura militar e iniciava os debates para a Constituição de 1988 — um marco decisivo para a criação do Sistema Único de Saúde (SUS).
Nise da Silveira foi uma alagoana que, nessa época, estava no Rio para fazer residência em psiquiatria, mas acaba presa por ter “livros subversivos” e fama de comunista. Depois de ser solta, ela é mandada para o setor de Terapia Ocupacional do Hospital de Engenho de Dentro.
Nise da Silveira
Arquivo Nise da Silveira via Agência Senado
“Lá ela cria o Museu de Imagens e Consciente, que é como se fosse um prontuário do paciente, muito interessante. Ela vai fazendo um registro dia a dia das produções das pessoas e vai colecionando. Você vê sequências e nisso ela descobriu artistas incríveis, como Emílio de Barris, Fernando Diniz, Adelina, são figuras que de alguma maneira encantam o mundo das artes", relata.
"Ela e o Juliano Moreira não conviveram, não foram contemporâneos e não se contrapõem, mas são experiências distintas. Para os dois, a reforma psiquiátrica nasce a partir da trajetória da sensibilidade dessas pessoas”, destaca o médico.
O trabalho desses dois profissionais ajudou a embasar a forma de tratamento usada hoje na rede de saúde: a lógica do paciente inserido plenamente na sociedade, e não mais isolado em manicômios como antigamente.
No estado do Rio, os manicômios públicos já foram desativados, e o Conselho Nacional de Justiça determinou a extinção das unidades psiquiátricas em presídios.
'Qual a cor da minha aura?'
Coleção de Artur Bispo do Rosário
Thaís Espírito Santo/g1
No Museu Bispo do Rosário, que fica na Colônia Juliano Moreira, uma exposição celebra os 100 anos da instituição com mais de 400 itens, incluindo obras produzidas por pacientes.
O acervo destaca a trajetória de Arthur Bispo do Rosário, ex-interno que viveu e morreu no local, quando ainda funcionava como um manicômio. A mostra relembra a história da colônia, que abrigou milhares de pessoas ao longo de um século e ocupa uma área equivalente à do bairro de Copacabana.
O psiquiatra Fagundes conta que Bispo trabalhava em um hospital de Botafogo quando teve um surto psicótico e foi levado para o lugar.
Na sua psicose, ele passou a acreditar que era um inventariante de Deus e que precisaria prestar conta de toda produção humana ao Criador quando morresse. A exposição mostra parte de sua coleção.
Coleção de Artur Bispo do Rosário
Thaís Espírito Santo/g1
“Se há uma coisa que acontece na psicose é uma certa quebra entre o significante e o significado, que é o que acontece com o Artur Bispo do Rosário. Ele faz uma coleção do que ele chamava de objetos mumificados. Ele pegava madeira e com o fio ele fazia a mumificação e bordava para o que servia.”
Era assim que pedaços de madeira e argila se tornavam uma gangorra, por exemplo.
“Ele se torna um inventariante de Deus e vai recolhendo coisas do lixo, fazendo embalagens, desfiando as roupas do hospital psiquiátrico e lençóis e fazendo um bordado, descrevendo as coisas. Em outros trechos, ele vai relacionando quem são as pessoas, tem uns amarelos, vermelhos, ele classifica todas em uma construção própria”, explica.
“Pra entrar no recinto dele, ele sempre te fazia uma pergunta e se errasse não entrava. Ele perguntava: qual é a cor da minha aura?”.
Coleção de Artur Bispo do Rosário
Thaís Espírito Santo/g1
A exposição tem como objetivo resgatar a memória dos períodos mais sombrios do tratamento da saúde mental, ao mesmo tempo em que valoriza a potência criativa dos pacientes. A curadoria levou cerca de um ano para reunir o acervo histórico
“A gente tem personagens históricos como a Stella do Patrocínio, o Antônio Bragança e outros artistas que tiveram muitas das suas carreiras invisibilizadas por terem sido pessoas que passaram pelo processo de institucionalização. É uma exposição muito importante para pensar, né? O que que foi esse espaço, a Colônia Juliano Moreira, que foi um dos maiores manicômios do Brasil ali no século XX?”, questiona a curadora Carolina Rodrigues.
O desafio hoje
Para o psiquiatra Fagundes, hoje o desafio é fazer com que a sociedade entenda que deve respeito a toda forma e experiência de vida.
“A gente precisa sustentar o cuidado super individualizado, singularizado para cada pessoa. O inverso do manicômio é a vida na sociedade. E o que garante que a gente possa de fato ser antimanicomial não é segurar uma faixa na rua, mas é a relação de respeito e, sobretudo, a percepção de que o outro que você tá cuidando, por pior que ele esteja, tá largado na rua, doidão, com uso de drogas, super vulnerabilizado, ele é uma pessoa igual a você”, afirma o médico.
“A promoção de autonomia nas pessoas produz o sujeito de direitos e o sujeito de direitos tem mais consciência da sua cidadania, do seu papel no mundo. E a saúde mental tem uma trajetória muito revolucionária nesse sentido. A luta antimanicomial e a reforma psiquiátrica foram projetos de sociedade bem sucedidos, foram eles que ajudaram o SUS a avançar na promoção de equidade, por exemplo”, completa o diretor do museu, Alexandre Trino.
No entanto, para o médico, a equidade total ainda não foi alcançada.
“Acho que seremos mais cidadãos quando um desembargador entrar em uma fila atrás de um servente de pedreiro e respeitar a fila porque o servente chegou primeiro. Quando a gente chegar nisso, vamos viver uma experiência em que o manicômio é uma referência totalmente do passado, mas enquanto a gente tiver a percepção de que uns valem mais do que outros, não”, conclui Fagundes.
Semana da Luta Antimanicomial
O Centro de Cultura e Convivência Pedra Branca (CECCO) e Museu Bispo do Rosário promovem de 19 a 23 de maio, das 9h às 16h30, a II Semana de Luta Antimanicomial do CECCO Pedra Branca.
Oficinas, rodas de conversa, apresentação de trabalhos acadêmicos e a Feira de Economia Solidária fazem parte da programação da semana.
Dia 19/05 (aberto ao público): roda de conversa sobre "Desinstitucionalização e os desafios na Redes de Atenção Psicossocial", apresentação artística e oficina de ritmo.
Dia 20/05 (exclusivo para profissionais de saúde): roda de conversa sobre saúde do trabalhador, Feira de Economia Solidária, oficina de corpo para os trabalhadores da Saúde, campanha de vacinação e apresentação artística.
Dia 21/05 (aberto ao público): roda de conversa sobre Participação Social no SUS, apresentação de trabalho acadêmico e apresentações artísticas.
Dia 22/05 (atividades para crianças e adolescentes): manhã de jogos e oficina brincante para crianças, jovens e adolescentes. À tarde, roda de conversa sobre saúde mental na infância e adolescência e apresentação artística.
Dia 23/05 (aberto ao público): roda de conversa sobre Saúde e Arte na Luta Antimanicomial e encontro de Blocos Carnavalescos.
O Museu Bispo do Rosário fica na Estrada Rodrigues Caldas, 3.400, na Taquara, Jacarepaguá.
A Luta Antimanicomial no Brasil ganhou força na segunda metade do século 20, impulsionada pelo processo de redemocratização após a ditadura militar. O movimento é lembrado anualmente em 18 de maio, data que marca o Dia Nacional da Luta Antimanicomial.
Para abordar o tema, o g1 elaborou uma linha do tempo sobre o tratamento da loucura e destaca figuras importantes desse movimento, como Juliano Moreira e Nise da Silveira.
No Rio, a Colônia Juliano Moreira, referência histórica na saúde mental e maior instituição psiquiátrica da cidade, completa 100 anos em 2025, celebrados com uma exposição que resgata sua memória (veja mais detalhes abaixo).
Possessões e exorcismos
Em entrevista ao g1, o psiquiatra Hugo Fagundes, superintendente de Saúde Mental, da Prefeitura do Rio, relembra os principais marcos da história da psiquiatria no país e destaca o longo período em que pacientes foram submetidos a abordagens agressivas e tratamentos inadequados.
Ele explica que, ao longo da história, diferentes termos pejorativos foram usados para se referir a pessoas que pensavam de forma considerada "não normal", como "loucos", "alienados" e "desprovidos de razão".
Em determinados períodos, segundo ele, chegou-se a atribuir essas condições a possessões demoníacas.
De ‘possuídos’, alienados e loucos para pacientes neurodivergentes
Arte g1
O especialista explica que a mudança de visão sobre os pacientes começou na Revolução Francesa, mas que até então eles eram tratados principalmente sob uma perspectiva religiosa.
“Até a Revolução Francesa, entendiam a loucura como uma possessão. Na Idade Média, as cidades pegavam os loucos e botaram em um navio para descer o rio para outra cidade. Eram experiências de muita violência porque entendiam como possessão demoníaca e sempre a construção da experiência humana com a loucura era entendida como um desequilíbrio e uma desrazão", afirma.
"Era uma ideia de que o indivíduo era despossuído de razão, seja porque alguma coisa incorporava nele, ou porque ele degenerava, seja porque ele desequilibrava de humor, enfim."
Lobotomia e eletrochoques
A Revolução Francesa acontece no século XVIII e os intelectuais passam a enxergar a loucura como uma doença mental, conforme explica Fagundes. A partir desse momento, é criada a psiquiatria e as abordagens que seriam usadas com os loucos: hospitais psiquiátricos com áreas verdes, momentos de conexão com a natureza e o próprio eu.
Aparelho de lobotomia em exposição no Museu Bispo do Rosário
Thaís Espírito Santo/g1
“A descrição do tratamento até então era de convencer o sujeito da falta de razão que ele tinha nos seus pensamentos, então era moral. A ideia era de um lugar muito bom, com contato com a natureza, para conseguir convencer a pessoa a sair desse lugar. As intervenções físicas vão acabar acontecendo a partir daí”, conta.
Com as intervenções físicas, começa um processo de tortura dos pacientes, explica o especialista.
“A gente tem propostas das mais absurdas: cadeira giratória, banhos gelados, toda sorte de violência para tentar criar soluções para resolver. Ao ponto que identificavam que pessoas delirantes que tinham uma febre muito alta, melhoravam. Então, houve um determinado momento que inocularam malária nos pacientes. Na malarioterapia, você lidava com a febre alta", afirma.
"A mesma coisa com crise convulsiva, então falavam: ‘vamos induzir crises’. A eletroconvulsoterapia nada mais é do que uma corrente elétrica de baixa frequência nas têmporas para de alguma maneira induzir uma crise convulsiva. São sessões de eletrochoque, mas os pacientes melhoravam e voltavam a ter surtos depois”, continua Fagundes.
Aparelhos de eletrochoques em exposição no Museu Bispo do Rosário
Thaís Espírito Santo/g1
Foi nessa época que os pacientes começaram a ser submetidos a lobotomias, que eram cirurgias onde com a abertura do cérebro, cortavam-se conexões de hemisférios para reduzir os pensamentos e reações dos doentes.
“Nisso, com a ideia do hospital psiquiátrico que seria quase um spa, o que se montou foram estruturas de confinamento de pessoas que eram sequestradas, era um cativeiro e muito sofrimento. A história da psiquiatria é de muita violência. Qualquer movimento de rebeldia de um sujeito era tido como um sintoma agudo do seu agravamento mental. Então para as mulheres, por exemplo, não tenho dúvida de que as experiências eram pavorosas”, destaca.
Brasil e o Hospital Nacional dos Alienados
A situação começa a mudar quando D. Pedro II cria o Hospital Nacional dos Alienados, onde hoje funciona o Palácio Universitário da UFRJ, na Praia Vermelha, Zona Sul do Rio. Na segunda metade do século XVIII, um psiquiatra baiano se destaca: Juliano Moreira.
“E aí tem uma figura muito interessante, que é um psiquiatra baiano, negro, de origem simples, que falava seis línguas. Juliano Moreira vem para o Rio em uma articulação política e acaba assumindo o papel de responsável pela saúde mental no Distrito Federal, que por sua vez era o responsável pela política de saúde mental do país inteiro."
Juliano Moreira defendia um tratamento menos intervencionista do ponto de vista físico e mais acolhedor em termos mentais. Com o aumento da demanda, o setor de internação do Hospital Nacional dos Alienados começou a ficar sobrecarregado.
O governo passou a criar colônias de alienados. Primeiro, no Engenho de Dentro, seguido pela Ilha do Governador — onde posteriormente foi instalada a Base Aérea do Galeão — e, por fim, na antiga Fazenda do Barão da Taquara, hoje conhecida como Colônia Juliano Moreira, um dos últimos manicômios a serem desativados no Rio de Janeiro.
No entanto, até então, o tratamento aos pacientes ainda era marcado por muita agressividade.
“Na Colônia tem histórias absurdas, como de uma das companheiras de um sheik que veio para o Rio e ela teve uma crise convulsiva no Centro, desgarrada das pessoas e como ela só falava árabe, foi trazida para cá e morreu aqui."
"A história de sofrimento é absolutamente incomensurável, essas pessoas perderam a juventude, os dentes, os amigos, os laços sociais, e a gente foi construindo caminhos para desmontar isso aqui”, conta Fagundes.
A luta antimanicomial e o legado de Juliano Moreira
“Quando se fala de luta antimanicomial, o primeiro nome que as pessoas falam é Nise da Silveira, mas ela é uma história que vem muito depois. A luta começou no final dos anos 70, com uma geração de médicos na efervescência da luta pela anistia, da luta pela redemocratização do país, para derrubar a ditadura”, afirma.
O avanço da luta antimanicomial ganhou força após a chegada do psiquiatra italiano Franco Basaglia, que fica horrorizado com as condições encontradas em um manicômio de Barbacena (MG). Basaglia chega a definir o lugar como “um campo de concentração de loucos”.
Doutor Juliano Moreira representado em pintura no Museu Bispo do Rosário
Thaís Espírito Santo/g1
“Ele insufla um movimento, que cresce como um movimento social e não mais um movimento de profissionais da saúde. Na verdade, faz parte da pauta de garantia de lutar por democracia, por justiça social, por assim, por humanizar o cuidado e pela construção do SUS”, afirma o médico.
Naquele período, o Brasil atravessava os anos finais da ditadura militar e iniciava os debates para a Constituição de 1988 — um marco decisivo para a criação do Sistema Único de Saúde (SUS).
Nise da Silveira foi uma alagoana que, nessa época, estava no Rio para fazer residência em psiquiatria, mas acaba presa por ter “livros subversivos” e fama de comunista. Depois de ser solta, ela é mandada para o setor de Terapia Ocupacional do Hospital de Engenho de Dentro.
Nise da Silveira
Arquivo Nise da Silveira via Agência Senado
“Lá ela cria o Museu de Imagens e Consciente, que é como se fosse um prontuário do paciente, muito interessante. Ela vai fazendo um registro dia a dia das produções das pessoas e vai colecionando. Você vê sequências e nisso ela descobriu artistas incríveis, como Emílio de Barris, Fernando Diniz, Adelina, são figuras que de alguma maneira encantam o mundo das artes", relata.
"Ela e o Juliano Moreira não conviveram, não foram contemporâneos e não se contrapõem, mas são experiências distintas. Para os dois, a reforma psiquiátrica nasce a partir da trajetória da sensibilidade dessas pessoas”, destaca o médico.
O trabalho desses dois profissionais ajudou a embasar a forma de tratamento usada hoje na rede de saúde: a lógica do paciente inserido plenamente na sociedade, e não mais isolado em manicômios como antigamente.
No estado do Rio, os manicômios públicos já foram desativados, e o Conselho Nacional de Justiça determinou a extinção das unidades psiquiátricas em presídios.
'Qual a cor da minha aura?'
Coleção de Artur Bispo do Rosário
Thaís Espírito Santo/g1
No Museu Bispo do Rosário, que fica na Colônia Juliano Moreira, uma exposição celebra os 100 anos da instituição com mais de 400 itens, incluindo obras produzidas por pacientes.
O acervo destaca a trajetória de Arthur Bispo do Rosário, ex-interno que viveu e morreu no local, quando ainda funcionava como um manicômio. A mostra relembra a história da colônia, que abrigou milhares de pessoas ao longo de um século e ocupa uma área equivalente à do bairro de Copacabana.
O psiquiatra Fagundes conta que Bispo trabalhava em um hospital de Botafogo quando teve um surto psicótico e foi levado para o lugar.
Na sua psicose, ele passou a acreditar que era um inventariante de Deus e que precisaria prestar conta de toda produção humana ao Criador quando morresse. A exposição mostra parte de sua coleção.
Coleção de Artur Bispo do Rosário
Thaís Espírito Santo/g1
“Se há uma coisa que acontece na psicose é uma certa quebra entre o significante e o significado, que é o que acontece com o Artur Bispo do Rosário. Ele faz uma coleção do que ele chamava de objetos mumificados. Ele pegava madeira e com o fio ele fazia a mumificação e bordava para o que servia.”
Era assim que pedaços de madeira e argila se tornavam uma gangorra, por exemplo.
“Ele se torna um inventariante de Deus e vai recolhendo coisas do lixo, fazendo embalagens, desfiando as roupas do hospital psiquiátrico e lençóis e fazendo um bordado, descrevendo as coisas. Em outros trechos, ele vai relacionando quem são as pessoas, tem uns amarelos, vermelhos, ele classifica todas em uma construção própria”, explica.
“Pra entrar no recinto dele, ele sempre te fazia uma pergunta e se errasse não entrava. Ele perguntava: qual é a cor da minha aura?”.
Coleção de Artur Bispo do Rosário
Thaís Espírito Santo/g1
A exposição tem como objetivo resgatar a memória dos períodos mais sombrios do tratamento da saúde mental, ao mesmo tempo em que valoriza a potência criativa dos pacientes. A curadoria levou cerca de um ano para reunir o acervo histórico
“A gente tem personagens históricos como a Stella do Patrocínio, o Antônio Bragança e outros artistas que tiveram muitas das suas carreiras invisibilizadas por terem sido pessoas que passaram pelo processo de institucionalização. É uma exposição muito importante para pensar, né? O que que foi esse espaço, a Colônia Juliano Moreira, que foi um dos maiores manicômios do Brasil ali no século XX?”, questiona a curadora Carolina Rodrigues.
O desafio hoje
Para o psiquiatra Fagundes, hoje o desafio é fazer com que a sociedade entenda que deve respeito a toda forma e experiência de vida.
“A gente precisa sustentar o cuidado super individualizado, singularizado para cada pessoa. O inverso do manicômio é a vida na sociedade. E o que garante que a gente possa de fato ser antimanicomial não é segurar uma faixa na rua, mas é a relação de respeito e, sobretudo, a percepção de que o outro que você tá cuidando, por pior que ele esteja, tá largado na rua, doidão, com uso de drogas, super vulnerabilizado, ele é uma pessoa igual a você”, afirma o médico.
“A promoção de autonomia nas pessoas produz o sujeito de direitos e o sujeito de direitos tem mais consciência da sua cidadania, do seu papel no mundo. E a saúde mental tem uma trajetória muito revolucionária nesse sentido. A luta antimanicomial e a reforma psiquiátrica foram projetos de sociedade bem sucedidos, foram eles que ajudaram o SUS a avançar na promoção de equidade, por exemplo”, completa o diretor do museu, Alexandre Trino.
No entanto, para o médico, a equidade total ainda não foi alcançada.
“Acho que seremos mais cidadãos quando um desembargador entrar em uma fila atrás de um servente de pedreiro e respeitar a fila porque o servente chegou primeiro. Quando a gente chegar nisso, vamos viver uma experiência em que o manicômio é uma referência totalmente do passado, mas enquanto a gente tiver a percepção de que uns valem mais do que outros, não”, conclui Fagundes.
Semana da Luta Antimanicomial
O Centro de Cultura e Convivência Pedra Branca (CECCO) e Museu Bispo do Rosário promovem de 19 a 23 de maio, das 9h às 16h30, a II Semana de Luta Antimanicomial do CECCO Pedra Branca.
Oficinas, rodas de conversa, apresentação de trabalhos acadêmicos e a Feira de Economia Solidária fazem parte da programação da semana.
Dia 19/05 (aberto ao público): roda de conversa sobre "Desinstitucionalização e os desafios na Redes de Atenção Psicossocial", apresentação artística e oficina de ritmo.
Dia 20/05 (exclusivo para profissionais de saúde): roda de conversa sobre saúde do trabalhador, Feira de Economia Solidária, oficina de corpo para os trabalhadores da Saúde, campanha de vacinação e apresentação artística.
Dia 21/05 (aberto ao público): roda de conversa sobre Participação Social no SUS, apresentação de trabalho acadêmico e apresentações artísticas.
Dia 22/05 (atividades para crianças e adolescentes): manhã de jogos e oficina brincante para crianças, jovens e adolescentes. À tarde, roda de conversa sobre saúde mental na infância e adolescência e apresentação artística.
Dia 23/05 (aberto ao público): roda de conversa sobre Saúde e Arte na Luta Antimanicomial e encontro de Blocos Carnavalescos.
O Museu Bispo do Rosário fica na Estrada Rodrigues Caldas, 3.400, na Taquara, Jacarepaguá.
Para ler a notícia completa, acesse o link original:
1 curtidas
Notícias Relacionadas
Não há mais notícias para carregar
Comentários 0