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'Não nasci Eva, mas vou morrer Eva', diz jovem trans que mudou nome e gênero nos documentos

'Não nasci Eva, mas vou morrer Eva', diz jovem trans que mudou nome e gênero nos documentos
Possibilidade de mudança representa reconhecimento da existência e acesso a serviços essenciais sem constrangimento para pessoas trans e travestis. Quase 600 pessoas já fizeram a retificação nos últimos quatro anos no Espírito Santo. Ana Eva Santos Gonçalves, de 23 anos, fez a retificação de nome e gênero em 2024.
Arquivo pessoal
“Meu nome é Ana Eva Santos Gonçalves. Ana Eva. Ana escolhi porque é uma tradição da minha família – avó era Ana, mãe é Ana, e tem sobrinhas Ana… Essa inspiração do feminino eu quis reverenciar quem veio antes de mim, todas com histórias de resistência, de enfrentamento, e fortalecer essa tradição. [...] Eva também é muito simbólico. A primeira mulher. Uma referência a uma religiosidade que é muito importante na minha história também”.
A fala da estudante de Direito Ana Eva, de 23 anos, marca o Dia do Orgulho, comemorado neste sábado (28). No ano passado, a jovem conseguiu fazer a retificação de nome e gênero e percebeu que o documento virou uma forma de se respaldar, buscar direitos e diminuir constrangimentos e preconceitos no dia a dia.
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Eva não está sozinha. Nos últimos quatro anos, 589 pessoas realizaram a retificação de nome e gênero no Espírito Santo, segundo dados da Defensoria Pública estadual.
Em 2018, uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) uniformizou o entendimento adotado no país e decidiu que todas as pessoas trans e travestis poderiam retificar nome e gênero diretamente nos cartórios de registros civis, sem a necessidade de processo judicial.
"A decisão do STF simplificou o procedimento e possibilitou que todas as pessoas trans conseguiriam retificar diretamente nos cartórios, sem necessidade de prévia cirurgia e laudos médicos, ou seja, bastaria a declaração de vontade de pessoa interessada. Antes, já tínhamos alguns casos, mas todos mediante processo judicial, e tínhamos inúmeros problemas, principalmente, demora e patologização", explicou o defensor público Douglas Admiral.
Ana Eva Santos Gonçalves, de 23 anos, fez a retificação de nome e gênero em 2024.
Arquivo pessoal
Retificação de nome e gênero no ES:
238 em 2022;
190 em 2023;
114 em 2024;
47 até junho de 2025;
Total: 589 (casos auxiliados pela Defensoria Pública do Espírito Santo)
Na prática, qualquer pessoa maior de 18 anos pode procurar o cartório em onde foi registrada ou do local de residência para solicitar a retificação, sem exigência de que esteja acompanhada de advogado ou defensor público.
Eva chegou a achar que fazer essa alteração no documento não era necessário, mas logo percebeu que seria fundamental. Não só por ser um direito, mas como ato de resistência.
Transição
O caminho da Eva até chegar a retificação de nome e gênero, que aconteceu em 2024, começou efetivamente no começou no final de 2020.
“Em algum momento da minha trajetória de vida eu percebi que a identidade masculina que me colocaram quando eu nasci não era pra mim. Foi florescendo no final da minha adolescência. A Eva se formou fluida, viva, sempre em mutação, e hoje não é algo concreto porque a gente tá sempre mudando. Eu acho que não nasci Eva, mas vou morrer Eva, ainda que esteja sempre em construção”, falou a estudante.
A jovem avaliou que o apoio recebido dentro de casa fez toda a diferença durante o processo.
"Graças à minha mãe, a minha história é diferente de muitas travestis. Obvi­amente, a gente sofre algumas violências relacionadas à transfobia, misoginias, mas graças a ela a minha história começou a ser contada de um jeito diferente, com apoio e incentivo".
Ana Eva Santos Gonçalves, de 23 anos, com a mãe Ana Claudia.
Arquivo pessoal
Atualmente, Ana Eva cursa Direito na Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) e pretende atuar em direitos humanos, especialmente em defesa de mulheres cis e trans, pessoas negras e no direito à religiosidade.
A possibilidade de retificar o nome se fortaleceu justamente com a entrada na universidade, em 2022.
"Na primeira vez que entrei no portal do aluno vi a opção de 'nome social' e pensei: 'Nossa, que avançado'. Antes da faculdade, eu fiz EJA, cheguei a perguntar se tinha a opção de colocar o nome social e eles falaram que não".
Ana Eva com o grupo Transencruzilhadas, coletivo de estudos políticos, linguísticos e de Direitos Humanos de pessoas trans da Ufes. Espírito Santo.
Arquivo pessoal
A partir da retificação, realizada em 2024 com apoio da Associação Gold, Eva garante que, embora seu nome já existisse antes do documento, ter o registro formal foi fundamental.
"Quando a gente vai atrás dos direitos constitucionais, a gente se respalda de muito constrangimento. Parece uma coisa simples, mas, às vezes, eu ia passar um PIX, e já vinha o questionamento. Não é todo mundo que tem sensibilidade. Então, por uma questão de respaldo e garantias de direito, foi fundamental para mim", falou.
O que é preciso para fazer a retificação?
A retificação de nome e gênero ocorre no cartório de registro civil. O interessado precisa apresentar certidões recentes (nascimento, casamento), RG, CPF, comprovante de endereço, certidões cíveis, criminais, trabalhistas e de protesto (últimos 5 anos), e outros documentos previstos no Provimento 73/18. (confira aqui a lista completa)
O prazo médio para emissão da nova certidão é de 30 dias. Depois disso, a pessoa deve atualizar todos os registros nos demais órgãos públicos ou privados (como bancos, receita federal, entre outros).
Serviço de retificação de nome e gênero vai ser oferecido durante I Seminário LGBTQIAPN+, na Assembleia Legislativa do Espírito Santo.
DPES
Não existe uma determinação sobre a gratuidade da retificação, mas, de acordo com Douglas Admiral, no Espírito Santo, ela tem sido garantida após intervenções da Defensoria Pública.
“Existem pontos de resistência, mas com atuação da Defensoria, a gratuidade tem sido garantida. Nos outros estados, isso é mais difícil. Essa questão das taxas depende da legislação estadual, a gratuidade ainda não está uniformizada. O nosso entendimento é que deveria ser garantido gratuitamente”, avaliou.
Douglas reforçou que a Defensoria Pública funciona de "porta aberta" para esse tipo de atendimento, especialmente para auxiliar com a dificuldade que surge no momento de reunir a documentação necessária.
Além disso, atua em parceria com instituições na realização de atendimentos e mutirões, como ocorreu, durante o I Seminário LGBTQIAPN+, organizado pela Comissão de Defesa dos Direitos Humanos da Assembleia Legislativa, em alusão ao Mês do Orgulho, nesta sexta (27).
De acordo com a organização do evento, 32 atendimentos foram feitos apenas durante a manhã desta sexta, e poderão se concretizar em novas retificações.
"A possibilidade de retificação de nome e gênero representa o verdadeiro reconhecimento da existência dessas pessoas, da maneira como se enxergam e se identificam. A facilitação do acesso a esse direito foi muito importante para que elas deixassem de ser excluídas de serviços essenciais à vida civil, como comparecer a uma agência bancária ou um atendimento de saúde que ainda é estruturado em um sistema binário. Antes, o constrangimento passado pelo nome civil as afastava desses serviços. Com a mudança, se sentem mais livres e mais pertencentes e podem exercer a cidadania de forma plena", falou.
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Ainda é preciso avançar
Há duas décadas, a Associação Grupo Orgulho, Liberdade e Dignidade – GOLD atua em defesa dos direitos humanos e da dignidade da população LGBTQIAPN+ no Espírito Santo.
A coordenadora da instituição, Deborah Sabará, vê no dia a dia como é perceptível a mudança em diversos comportamentos e ações desde que o direito à retificação foi reconhecido. Mas reforçou que nem sempre é simples, alguns contextos são de grande vulnerabilidade.
"Não é apenas o acesso à retificação, muitas pessoas precisam de apoio até para tirar documentos básicos ou conseguir passagem para ir aos locais onde ocorrem os mutirões. [...] Já organizamos três mutirões de retificação de nome e gênero. Cada um teve cerca de 100 inscritos, mas nem todos conseguem concluir o processo".
Para a coordenadora, todos os serviços públicos devem estar atentos a essas demandas.
"Cras, Creas, unidades de saúde, empresas... Muitas vezes, o primeiro passo pode partir de um atendimento sensível. É importante que essas instituições saibam que podem encaminhar essas pessoas para a Associação Gold, que mantém parceria permanente com a Defensoria".
A própria Déborah Sabará teve a retificação feita pela Defensoria Pública, durante um mutirão.
"Não entrei com ações antes da decisão do Supremo porque acreditava que só faria sentido após o direito estar garantido para todas as pessoas. E quando retifiquei, foi muito emocionante. Descobri que minha mudança já estava ativa no sistema quando fui pagar o MEI e apareceu 'Teatro Sabará' no cadastro — o nome da minha empresa. Foi um susto bom! [...] . Não preciso mais explicar quem sou, justificar. Já vivi situações em que, por não ter a retificação ainda, chamavam pelo nome morto, o que é profundamente doloroso", relatou.
Déborah lembrou ainda que a retificação é apenas um passo, mas outras pautas urgentes precisam ser debatidas.
“Pensar na infância e adolescência trans, garantir permanência na escola, acesso ao primeiro emprego, à formação profissional. Só com políticas públicas concretas vamos conseguir mudar a realidade de violência e exclusão que ainda é tão presente. É por isso que defendemos os mutirões e as ações específicas — elas não resolvem tudo, mas já fazem muita diferença”, avaliou.
A cada 100 pessoas trans, apenas quatro conseguem emprego com carteira assinada
Por que isso importa?
No Dia do Orgulho, lembrar que o reconhecimento legal de nome e gênero não é apenas uma formalidade é uma conquista de liberdade, visibilidade e dignidade.
A retificação impacta o acesso a serviços de saúde, bancários, educacionais, de transporte e viagens, combatendo discriminações e constrangimentos diários.
As histórias de Ana Eva e Débora mostram que, embora avanços existam, ainda há barreiras institucionais e sociais a superar. A atuação da Defensoria Pública, em parceria com movimentos e instituições, como Associação Gold, têm sido decisiva, mas o próximo passo é ampliar mutirões, apoio logístico e sensibilização nos cartórios, escolas, unidades de saúde e empresas.
A retificação de nome e gênero é um direito que promove inclusão, cidadania plena e respeito, elementos centrais para uma sociedade que proclama avanços, mas precisa ainda trilhar o caminho da equidade.
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