'Se tudo der errado, viro CLT': o que está por trás da aversão dos jovens ao trabalho com carteira assinada

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Crianças e adolescentes associam modelo a rotina dura, com ônibus lotado e bronca de chefe, enquanto influenciadores aproveitam para vender ideia de sucesso fácil na internet. Por que muitos jovens não querem trabalhar como ‘CLT’?
Para muitos jovens — e até crianças — ter um emprego com carteira assinada virou sinônimo de perrengue. É o retrato de quem acorda às cinco da manhã e pega ônibus lotado para ouvir bronca de chefe, muitas vezes por um salário mínimo.
Fabiana Sobrinho, de Mogi das Cruzes (SP), foi uma das pessoas que levantou esse alerta nas redes sociais nos últimos meses, ao perceber que sua filha de 12 anos via a CLT de forma negativa, e que o termo já era até usado como ofensa entre os adolescentes.
“Ela dizia: ‘Vou estudar para não virar um CLT.’ Aí eu comecei a questionar e repreender, porque essa fala não fazia sentido. Perguntei o que ela achava que era ser CLT e por que via isso como algo ruim. Conversei com outros adolescentes e todos têm o mesmo pensamento: de que ser CLT é ser fracassado.”
? CLT é a sigla de Consolidação das Leis do Trabalho, uma lei brasileira de 1943 que regula as relações de emprego no país. Os chamados “CLTs”, que trabalham com carteira assinada, precisam seguir as regras do regime e têm uma série de direitos garantidos por ele.
Nas redes sociais, a busca pelo termo “CLT” traz uma enxurrada de desabafos e memes sobre o modelo de trabalho.
“Fui pegar uma bolsa para usar e olha só que susto”, brincou uma mulher ao encontrar sua carteira profissional. "Imagina ser CLT a vida toda. Deus me livre", publicou outro usuário.
Mas o que está por trás do ódio à carteira assinada?
Você pode clicar nos tópicos abaixo para explorar cada ponto da reportagem.
▶️ Apesar do “boom” recente do assunto nas redes sociais, a percepção ruim em torno da CLT não é nova.
Historicamente, o emprego no Brasil é visto como algo degradante por causa da cultura da escravidão, afirma a antropóloga Rosana Pinheiro-Machado, que pesquisa transformações no mundo do trabalho.
“Os empregos do Brasil, em geral, são mal pagos. As pessoas precisam se deslocar muito, trabalhar demais, ganhar muito pouco e ainda serem maltratadas, porque essa é a cultura do emprego no Brasil para baixa renda. Então, as pessoas preferem se virar e sentir que são livres do que ter um patrão que as humilha.”
▶️ A precarização do sistema e a evolução tecnológica têm levado jovens a buscarem formas alternativas de trabalho, como nas redes sociais.
“Tive a sorte de começar minha carreira na internet. Tenho pavor de ser CLT hoje em dia. Cresci vendo meus pais querendo só descansar no fim de semana porque estavam cansados da semana de trabalho, isso criou um bloqueio”, diz Erick Chaves, de 19 anos, conhecido como "Kinho" no TikTok.
Alejandro Ferreira, de 17, largou a escola para abrir uma empresa que promete ensinar a geração Z a faturar com o marketing digital. “O colegial não estava sendo muito compatível com a minha agenda”, conta.
▶️ Ter sucesso na internet não é um caminho fácil, como sugerem muitos influenciadores que incentivam "rasgar a CLT para ficar rico no digital.”
Pesquisadores da University College Dublin (UCD) comprovaram essa dificuldade ao monitorar milhares de perfis pequenos no Instagram de pessoas que buscavam ativamente ferramentas para crescer na internet. Em quatro meses, apenas 1,4% das 40 mil contas conseguiram superar 5 mil seguidores.
▶️ O discurso contra a CLT pode contribuir para a degradação moral da lei brasileira, que, na prática, garantiu uma série de direitos a trabalhadores antes hiperexplorados.
É o que destaca Paulo Fontes, professor do instituto de história da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). “É totalmente legítimo que os trabalhadores queiram mais autonomia, não pegar ônibus lotado todo dia... O problema é que a culpa de tudo isso não é da CLT”, diz.
“É ilusão achar que, ao atacar a CLT, você vai conquistar direitos. É justamente o contrário.”
Leia a reportagem completa a seguir.
? Rejeição à CLT: já existia, mas hoje é pior.
Aos seus mais de 1 milhão de seguidores no TikTok, Kinho explica, em tom de brincadeira (mas com grandes doses de sinceridade), porque, do alto dos 19 anos, não tem a menor vontade de trabalhar com carteira assinada.
“Ai, todos os jovens hoje não querem ser CLT. Lógico. Quem quer pegar um trem, seus adultos irresponsáveis? Quem quer pegar um trem pra ir até o Brás todo dia, na humilhação?”, questiona no vídeo.
Erick Chaves, o Kinho, posta vídeos no TikTok sobre não ter vontade de trabalhar como CLT
TikTok/Reprodução
Erick Chaves mora em Itaquaquecetuba (SP), no Alto Tietê, e, como muitos jovens atualmente, associa o emprego formal a uma série de perrengues do dia a dia. Ele cresceu vendo o pai trabalhar viajando por meses e a mãe, diarista, "sem tempo para nada".
“O pessoal da minha faixa etária não quer ter uma vida de escravidão, sem aproveitar a vida. É como a gente enxerga o trabalho hoje em dia.”
Para Bruna Neres, de 26 anos, a situação é um pouco diferente. Ela já trabalhou com carteira assinada na área de vendas, mas decidiu trocar os benefícios da CLT pela flexibilidade do empreendedorismo — e, claro, por um salário maior.
Em 2021, ela fez um curso de extensão de cílios e usou os quatro meses de seguro-desemprego para abrir um negócio próprio em Uberlândia (MG).
“Hoje em dia eu tenho uma flexibilidade maior na vida pessoal e profissional, consigo escolher minha jornada. Minha agenda é lotada, trabalho de segunda a sábado, mas ganho bem mais. A CLT, dependendo da sua área, limita o salário”, diz.
Bruna Neres passou a ganhar mais depois que abriu seu próprio negócio em Uberlândia (MG)
Arquivo pessoal
A antropóloga Rosana Pinheiro-Machado explica que a insatisfação dos brasileiros com o trabalho formal faz sentido, e não é de hoje, principalmente entre as classes mais baixas.
“Isso já aparece em estudos desde os anos 70, que mostram que as pessoas preferem se virar a ter um emprego ruim. Porque, por mais que a gente diga que o Brasil está em uma fase de pleno emprego, que tipo de empregos estão sendo gerados? Não é que as pessoas não querem a CLT, elas não querem empregos ruins."
Nos últimos anos, porém, influenciadores digitais têm aproveitado essa revolta histórica para articular “uma campanha jamais vista no Brasil contra a CLT”, diz a pesquisadora.
“Eles surfam nisso para vender cursos de mentoria e dizer que as pessoas vão enriquecer no digital.”
Volte ao resumo.
? Profissão: empreendedor digital
Foi em 2021 que Erick Chaves, o Kinho, começou a gravar vídeos para a internet como uma forma de distração. Dois anos depois, ele passou a ganhar dinheiro com o conteúdo e decidiu não seguir o caminho "tradicional" ao concluir o Ensino Médio.
“Desde 2023, com 17 anos, eu já não dependia mais dos meus pais porque recebia um salário bom na internet [com a monetização do TikTok]. Com a CLT, eu não estaria recebendo o que eu recebo”, conta.
Kinho diz que fatura de R$ 3 mil a R$ 5 mil por mês. Ele reconhece, no entanto, que não é fácil ganhar dinheiro na internet: “O povo do meu bairro me usou como referência depois que eu viralizei e tentou crescer nas redes sociais, mas é muito difícil”.
Para a antropóloga Rosana Pinheiro-Machado, um dos riscos dessa tendência é que os jovens, estimulados por poucos exemplos de sucesso nas redes sociais, larguem a escola ou até oportunidades de Jovem Aprendiz para investir no digital.
“Nós entrevistamos professores que já veem isso acontecendo. Eu sei que nem todo mundo vai ser CLT, mas não podemos demonizar esses trabalhadores porque os jovens vão entrar numa ilusão. E isso é mais um componente para evasão escolar.”
Alejandro Ferreira, de 17 anos, é dono de empresa que ensina empreendedorismo digital aos jovens
Instagram/Reprodução
Alejandro Ferreira, de São Paulo (SP), desistiu do Ensino Médio para empreender, mas diz que não incentiva os adolescentes a largarem os estudos. Para ele, "o digital anda lado a lado com o tradicional" e também pode ser uma ferramenta para ajudar a impulsionar os ganhos obtidos por um emprego CLT.
Aos 17 anos, ele e um colega são donos de uma empresa que ensina estratégias para vender na internet e ajuda a “despertar a mentalidade empreendedora, que foi o que mudou a minha vida por completo”, diz. O negócio fatura de R$ 30 mil a R$ 50 mil por mês, segundo Alejandro.
“Eu pretendo fazer o supletivo para finalizar o Ensino Médio. Em relação à faculdade, no momento eu não tenho interesse. [...] Se eu for fazer, não é para somar financeiramente, mas intelectualmente. É para ser estratégico naquilo, e não por causa de uma dependência do diploma”, afirma.
Volte ao resumo.
? Sair do 'CLT' para ficar rico? Não é bem assim…
Embora as redes sociais sejam constantemente bombardeadas por exemplos de sucesso de pessoas que faturam com o digital, essa não é a realidade da maioria, segundo um estudo da University College Dublin (UCD) liderado pela antropóloga Rosana Pinheiro-Machado, em colaboração com a cientista de dados Jéssica Matheus.
Além de acompanhar os grandes influenciadores, os pesquisadores monitoraram principalmente contas pequenas, de pessoas que têm investido tempo e dinheiro no aprendizado de estratégias digitais para o empreendedorismo.
“O que nós descobrimos com os aspirantes é que, para muitos, trabalhar com internet como um complemento de renda pode ser uma boa alternativa, mas enriquecer com o digital é muito difícil. A maioria não cresce”, explica Rosana.
O impacto é ainda maior sobre populações mais vulneráveis, como mulheres de baixa renda, que são atraídas pela promessa de ganhar uma renda extra em casa e decidem investir em cursos que muitas vezes não trazem resultados.
“Isso provoca frustração, baixa autoestima e autoculpa pelos fracassos", destaca o relatório.
“A realidade dos influenciadores parece ser muito próxima de nós. Aquele artista da Globo, aquela celebridade, antes parecia muito distante, agora o influencer está ali, mostrando a casa dele. Parece muito próximo, mas a verdade é que há uma distância imensa da nossa realidade”, diz a antropóloga.
Para o jovem Alejandro Ferreira, que vende os cursos de como faturar no digital, o risco existe em todas as formas de trabalho. “Não é certeza que uma pessoa vá fazer o Enem, tirar nota mil e passar na Fuvest. Nada é certo. É impossível vender a fórmula milagrosa do sucesso.”
A designer Fernanda Smaniotto Netto, de Porto Alegre (RS), trabalha com carteira assinada e diz que vê vários colegas que trabalham por conta própria considerando voltar para o “CLT”.
“CLT tem muitos benefícios. Para ser PJ [pessoa jurídica], tem que ganhar praticamente o dobro para compensar. Pagar plano de saúde hoje é muito caro, vale-alimentação… E tem a questão da estabilidade. Meu medo sempre foi esse: ter um mês ruim, não ter cliente”, afirma.
Para ela, parte da nova geração foi seduzida pela ilusão vendida nas redes sociais de que é fácil ganhar dinheiro sozinho: “Minha família inteira é de empreendedores, e eu vejo que empreender é viver com altos e baixos. Eles trabalham muito mais horas e fazem de tudo: parte administrativa, de RH… É um acúmulo de funções.”
Uma sondagem realizada pelo Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (FGV Ibre) no início de 2024 mostrou que 67,7% dos trabalhadores por conta própria entrevistados gostariam de possuir carteira de trabalho assinada.
Além disso, 45% deles eram autônomos por necessidade, e não por opção.
“Por mais que a gente tenha visto uma mudança das pessoas enxergarem no trabalho autônomo uma chance de ganhar mais, a maioria ainda entra nesse modelo por necessidade, porque perdeu a fonte de rendimento e precisa trabalhar. Não é algo tão espontâneo quanto parece”, explica Rodolpho Tobler, economista do FGV Ibre.
Volte ao resumo.
? Por que a CLT é importante?
Antes da criação da CLT, os trabalhadores não tinham jornada de trabalho definida, os salários podiam ser reduzidos, não havia garantia de remuneração em caso de doença nem qualquer tipo de controle sobre o trabalho infantil, explica o historiador Paulo Fontes.
A lei, então, impôs limites ao capital e ofereceu um caminho legal para os trabalhadores reivindicarem seus direitos, o que foi essencial para conter abusos, afirma o especialista.
Por isso, ele vê com receio os apelos para flexibilizar a legislação, que quase sempre vêm “no sentido de retirar direitos e diminuir o poder de barganha dos trabalhadores”.
“Isso tem criado um mundo de trabalho muito mais precarizado, inseguro, e parte dessa precarização e insegurança tem vindo com ideologias de extrema direita, muito conservadoras, que culpam a CLT por aquilo que, na verdade, tem a ver com o próprio sistema capitalista.”
Para ele, as mudanças nas relações de trabalho, com a popularização dos empregos por aplicativo, por exemplo, podem tornar necessário atualizar a lei. No entanto, isso deve ser feito garantindo a segurança social.
“E, infelizmente, não é assim que esse debate tem ocorrido. Isso gera uma ilusão no jovem de que ele vai trabalhar por conta própria, ser influencer e vai ficar rico, mas um ou outro exemplo de influencer bem-sucedido é uma absoluta exceção num mar de desigualdade e ausência de direitos”, afirma.
A pesquisadora Rosana Pinheiro-Machado defende que a luta dos trabalhadores deve ser pela melhoria da CLT, e não contra ela.
“Nós temos que passar a mensagem de que trabalhar vale a pena, fazer faculdade vale a pena, terminar o Ensino Médio vale a pena, que é isso que os países desenvolvidos e mais felizes do mundo fazem. Mas estamos indo para o caminho de jogar tudo isso pelo ralo.”
Volte ao resumo.
O que está por trás da rejeição dos jovens à CLT
TikTok/Reprodução
Trabalho registrado x Influenciador digital: conheça os ‘Blogueiros CLTs’
Para muitos jovens — e até crianças — ter um emprego com carteira assinada virou sinônimo de perrengue. É o retrato de quem acorda às cinco da manhã e pega ônibus lotado para ouvir bronca de chefe, muitas vezes por um salário mínimo.
Fabiana Sobrinho, de Mogi das Cruzes (SP), foi uma das pessoas que levantou esse alerta nas redes sociais nos últimos meses, ao perceber que sua filha de 12 anos via a CLT de forma negativa, e que o termo já era até usado como ofensa entre os adolescentes.
“Ela dizia: ‘Vou estudar para não virar um CLT.’ Aí eu comecei a questionar e repreender, porque essa fala não fazia sentido. Perguntei o que ela achava que era ser CLT e por que via isso como algo ruim. Conversei com outros adolescentes e todos têm o mesmo pensamento: de que ser CLT é ser fracassado.”
? CLT é a sigla de Consolidação das Leis do Trabalho, uma lei brasileira de 1943 que regula as relações de emprego no país. Os chamados “CLTs”, que trabalham com carteira assinada, precisam seguir as regras do regime e têm uma série de direitos garantidos por ele.
Nas redes sociais, a busca pelo termo “CLT” traz uma enxurrada de desabafos e memes sobre o modelo de trabalho.
“Fui pegar uma bolsa para usar e olha só que susto”, brincou uma mulher ao encontrar sua carteira profissional. "Imagina ser CLT a vida toda. Deus me livre", publicou outro usuário.
Mas o que está por trás do ódio à carteira assinada?
Você pode clicar nos tópicos abaixo para explorar cada ponto da reportagem.
▶️ Apesar do “boom” recente do assunto nas redes sociais, a percepção ruim em torno da CLT não é nova.
Historicamente, o emprego no Brasil é visto como algo degradante por causa da cultura da escravidão, afirma a antropóloga Rosana Pinheiro-Machado, que pesquisa transformações no mundo do trabalho.
“Os empregos do Brasil, em geral, são mal pagos. As pessoas precisam se deslocar muito, trabalhar demais, ganhar muito pouco e ainda serem maltratadas, porque essa é a cultura do emprego no Brasil para baixa renda. Então, as pessoas preferem se virar e sentir que são livres do que ter um patrão que as humilha.”
▶️ A precarização do sistema e a evolução tecnológica têm levado jovens a buscarem formas alternativas de trabalho, como nas redes sociais.
“Tive a sorte de começar minha carreira na internet. Tenho pavor de ser CLT hoje em dia. Cresci vendo meus pais querendo só descansar no fim de semana porque estavam cansados da semana de trabalho, isso criou um bloqueio”, diz Erick Chaves, de 19 anos, conhecido como "Kinho" no TikTok.
Alejandro Ferreira, de 17, largou a escola para abrir uma empresa que promete ensinar a geração Z a faturar com o marketing digital. “O colegial não estava sendo muito compatível com a minha agenda”, conta.
▶️ Ter sucesso na internet não é um caminho fácil, como sugerem muitos influenciadores que incentivam "rasgar a CLT para ficar rico no digital.”
Pesquisadores da University College Dublin (UCD) comprovaram essa dificuldade ao monitorar milhares de perfis pequenos no Instagram de pessoas que buscavam ativamente ferramentas para crescer na internet. Em quatro meses, apenas 1,4% das 40 mil contas conseguiram superar 5 mil seguidores.
▶️ O discurso contra a CLT pode contribuir para a degradação moral da lei brasileira, que, na prática, garantiu uma série de direitos a trabalhadores antes hiperexplorados.
É o que destaca Paulo Fontes, professor do instituto de história da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). “É totalmente legítimo que os trabalhadores queiram mais autonomia, não pegar ônibus lotado todo dia... O problema é que a culpa de tudo isso não é da CLT”, diz.
“É ilusão achar que, ao atacar a CLT, você vai conquistar direitos. É justamente o contrário.”
Leia a reportagem completa a seguir.
? Rejeição à CLT: já existia, mas hoje é pior.
Aos seus mais de 1 milhão de seguidores no TikTok, Kinho explica, em tom de brincadeira (mas com grandes doses de sinceridade), porque, do alto dos 19 anos, não tem a menor vontade de trabalhar com carteira assinada.
“Ai, todos os jovens hoje não querem ser CLT. Lógico. Quem quer pegar um trem, seus adultos irresponsáveis? Quem quer pegar um trem pra ir até o Brás todo dia, na humilhação?”, questiona no vídeo.
Erick Chaves, o Kinho, posta vídeos no TikTok sobre não ter vontade de trabalhar como CLT
TikTok/Reprodução
Erick Chaves mora em Itaquaquecetuba (SP), no Alto Tietê, e, como muitos jovens atualmente, associa o emprego formal a uma série de perrengues do dia a dia. Ele cresceu vendo o pai trabalhar viajando por meses e a mãe, diarista, "sem tempo para nada".
“O pessoal da minha faixa etária não quer ter uma vida de escravidão, sem aproveitar a vida. É como a gente enxerga o trabalho hoje em dia.”
Para Bruna Neres, de 26 anos, a situação é um pouco diferente. Ela já trabalhou com carteira assinada na área de vendas, mas decidiu trocar os benefícios da CLT pela flexibilidade do empreendedorismo — e, claro, por um salário maior.
Em 2021, ela fez um curso de extensão de cílios e usou os quatro meses de seguro-desemprego para abrir um negócio próprio em Uberlândia (MG).
“Hoje em dia eu tenho uma flexibilidade maior na vida pessoal e profissional, consigo escolher minha jornada. Minha agenda é lotada, trabalho de segunda a sábado, mas ganho bem mais. A CLT, dependendo da sua área, limita o salário”, diz.
Bruna Neres passou a ganhar mais depois que abriu seu próprio negócio em Uberlândia (MG)
Arquivo pessoal
A antropóloga Rosana Pinheiro-Machado explica que a insatisfação dos brasileiros com o trabalho formal faz sentido, e não é de hoje, principalmente entre as classes mais baixas.
“Isso já aparece em estudos desde os anos 70, que mostram que as pessoas preferem se virar a ter um emprego ruim. Porque, por mais que a gente diga que o Brasil está em uma fase de pleno emprego, que tipo de empregos estão sendo gerados? Não é que as pessoas não querem a CLT, elas não querem empregos ruins."
Nos últimos anos, porém, influenciadores digitais têm aproveitado essa revolta histórica para articular “uma campanha jamais vista no Brasil contra a CLT”, diz a pesquisadora.
“Eles surfam nisso para vender cursos de mentoria e dizer que as pessoas vão enriquecer no digital.”
Volte ao resumo.
? Profissão: empreendedor digital
Foi em 2021 que Erick Chaves, o Kinho, começou a gravar vídeos para a internet como uma forma de distração. Dois anos depois, ele passou a ganhar dinheiro com o conteúdo e decidiu não seguir o caminho "tradicional" ao concluir o Ensino Médio.
“Desde 2023, com 17 anos, eu já não dependia mais dos meus pais porque recebia um salário bom na internet [com a monetização do TikTok]. Com a CLT, eu não estaria recebendo o que eu recebo”, conta.
Kinho diz que fatura de R$ 3 mil a R$ 5 mil por mês. Ele reconhece, no entanto, que não é fácil ganhar dinheiro na internet: “O povo do meu bairro me usou como referência depois que eu viralizei e tentou crescer nas redes sociais, mas é muito difícil”.
Para a antropóloga Rosana Pinheiro-Machado, um dos riscos dessa tendência é que os jovens, estimulados por poucos exemplos de sucesso nas redes sociais, larguem a escola ou até oportunidades de Jovem Aprendiz para investir no digital.
“Nós entrevistamos professores que já veem isso acontecendo. Eu sei que nem todo mundo vai ser CLT, mas não podemos demonizar esses trabalhadores porque os jovens vão entrar numa ilusão. E isso é mais um componente para evasão escolar.”
Alejandro Ferreira, de 17 anos, é dono de empresa que ensina empreendedorismo digital aos jovens
Instagram/Reprodução
Alejandro Ferreira, de São Paulo (SP), desistiu do Ensino Médio para empreender, mas diz que não incentiva os adolescentes a largarem os estudos. Para ele, "o digital anda lado a lado com o tradicional" e também pode ser uma ferramenta para ajudar a impulsionar os ganhos obtidos por um emprego CLT.
Aos 17 anos, ele e um colega são donos de uma empresa que ensina estratégias para vender na internet e ajuda a “despertar a mentalidade empreendedora, que foi o que mudou a minha vida por completo”, diz. O negócio fatura de R$ 30 mil a R$ 50 mil por mês, segundo Alejandro.
“Eu pretendo fazer o supletivo para finalizar o Ensino Médio. Em relação à faculdade, no momento eu não tenho interesse. [...] Se eu for fazer, não é para somar financeiramente, mas intelectualmente. É para ser estratégico naquilo, e não por causa de uma dependência do diploma”, afirma.
Volte ao resumo.
? Sair do 'CLT' para ficar rico? Não é bem assim…
Embora as redes sociais sejam constantemente bombardeadas por exemplos de sucesso de pessoas que faturam com o digital, essa não é a realidade da maioria, segundo um estudo da University College Dublin (UCD) liderado pela antropóloga Rosana Pinheiro-Machado, em colaboração com a cientista de dados Jéssica Matheus.
Além de acompanhar os grandes influenciadores, os pesquisadores monitoraram principalmente contas pequenas, de pessoas que têm investido tempo e dinheiro no aprendizado de estratégias digitais para o empreendedorismo.
“O que nós descobrimos com os aspirantes é que, para muitos, trabalhar com internet como um complemento de renda pode ser uma boa alternativa, mas enriquecer com o digital é muito difícil. A maioria não cresce”, explica Rosana.
O impacto é ainda maior sobre populações mais vulneráveis, como mulheres de baixa renda, que são atraídas pela promessa de ganhar uma renda extra em casa e decidem investir em cursos que muitas vezes não trazem resultados.
“Isso provoca frustração, baixa autoestima e autoculpa pelos fracassos", destaca o relatório.
“A realidade dos influenciadores parece ser muito próxima de nós. Aquele artista da Globo, aquela celebridade, antes parecia muito distante, agora o influencer está ali, mostrando a casa dele. Parece muito próximo, mas a verdade é que há uma distância imensa da nossa realidade”, diz a antropóloga.
Para o jovem Alejandro Ferreira, que vende os cursos de como faturar no digital, o risco existe em todas as formas de trabalho. “Não é certeza que uma pessoa vá fazer o Enem, tirar nota mil e passar na Fuvest. Nada é certo. É impossível vender a fórmula milagrosa do sucesso.”
A designer Fernanda Smaniotto Netto, de Porto Alegre (RS), trabalha com carteira assinada e diz que vê vários colegas que trabalham por conta própria considerando voltar para o “CLT”.
“CLT tem muitos benefícios. Para ser PJ [pessoa jurídica], tem que ganhar praticamente o dobro para compensar. Pagar plano de saúde hoje é muito caro, vale-alimentação… E tem a questão da estabilidade. Meu medo sempre foi esse: ter um mês ruim, não ter cliente”, afirma.
Para ela, parte da nova geração foi seduzida pela ilusão vendida nas redes sociais de que é fácil ganhar dinheiro sozinho: “Minha família inteira é de empreendedores, e eu vejo que empreender é viver com altos e baixos. Eles trabalham muito mais horas e fazem de tudo: parte administrativa, de RH… É um acúmulo de funções.”
Uma sondagem realizada pelo Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (FGV Ibre) no início de 2024 mostrou que 67,7% dos trabalhadores por conta própria entrevistados gostariam de possuir carteira de trabalho assinada.
Além disso, 45% deles eram autônomos por necessidade, e não por opção.
“Por mais que a gente tenha visto uma mudança das pessoas enxergarem no trabalho autônomo uma chance de ganhar mais, a maioria ainda entra nesse modelo por necessidade, porque perdeu a fonte de rendimento e precisa trabalhar. Não é algo tão espontâneo quanto parece”, explica Rodolpho Tobler, economista do FGV Ibre.
Volte ao resumo.
? Por que a CLT é importante?
Antes da criação da CLT, os trabalhadores não tinham jornada de trabalho definida, os salários podiam ser reduzidos, não havia garantia de remuneração em caso de doença nem qualquer tipo de controle sobre o trabalho infantil, explica o historiador Paulo Fontes.
A lei, então, impôs limites ao capital e ofereceu um caminho legal para os trabalhadores reivindicarem seus direitos, o que foi essencial para conter abusos, afirma o especialista.
Por isso, ele vê com receio os apelos para flexibilizar a legislação, que quase sempre vêm “no sentido de retirar direitos e diminuir o poder de barganha dos trabalhadores”.
“Isso tem criado um mundo de trabalho muito mais precarizado, inseguro, e parte dessa precarização e insegurança tem vindo com ideologias de extrema direita, muito conservadoras, que culpam a CLT por aquilo que, na verdade, tem a ver com o próprio sistema capitalista.”
Para ele, as mudanças nas relações de trabalho, com a popularização dos empregos por aplicativo, por exemplo, podem tornar necessário atualizar a lei. No entanto, isso deve ser feito garantindo a segurança social.
“E, infelizmente, não é assim que esse debate tem ocorrido. Isso gera uma ilusão no jovem de que ele vai trabalhar por conta própria, ser influencer e vai ficar rico, mas um ou outro exemplo de influencer bem-sucedido é uma absoluta exceção num mar de desigualdade e ausência de direitos”, afirma.
A pesquisadora Rosana Pinheiro-Machado defende que a luta dos trabalhadores deve ser pela melhoria da CLT, e não contra ela.
“Nós temos que passar a mensagem de que trabalhar vale a pena, fazer faculdade vale a pena, terminar o Ensino Médio vale a pena, que é isso que os países desenvolvidos e mais felizes do mundo fazem. Mas estamos indo para o caminho de jogar tudo isso pelo ralo.”
Volte ao resumo.
O que está por trás da rejeição dos jovens à CLT
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