Caso dos espiões russos revela brechas na certidão de nascimento que o Brasil tenta fechar há 35 anos; entenda

Foi com a certidão de nascimento falsa que russos como Sergey Cherkasov, que viveu por mais de dez anos com o nome de Victor Muller Ferreira, conseguiram tirar RG, CPF e, a partir daí, abrir empresas, estudar e obter passaporte. O caso dos espiões russos com identidades brasileiras falsas, que voltou à tona após reportagem do jornal The New York Times da semana passada, escancara brechas no controle de documentos que partem de um único registro: o da certidão de nascimento.
Foi com ela que russos como Sergey Cherkasov, que viveu por mais de dez anos com o nome de Victor Muller Ferreira, conseguiram tirar RG, CPF e, a partir daí, abrir empresas, estudar e obter passaporte.
Semelhante a outros espiões que assumiram identidades brasileiras para daqui viajar para seus países-alvos, como os EUA, Sergey tinha uma certidão de nascimento autêntica, mas com um nome inventado.
O documento havia realmente sido registrado em um cartório brasileiro — no caso dele, no Rio de Janeiro, em 1989.
Segundo o New York Times, a suspeita de investigadores brasileiros é que agentes da extinta KGB, o serviço secreto da antiga União Soviética, podem ter registrado nascimentos de bebês fictícios no final dos anos 1980 para, no futuro, essas certidões serem usadas por espiões.
Ainda não há confirmação oficial de que essa hipótese ousada seja mesmo a verdadeira.
O fato é que Sergey, por exemplo, chegou no Brasil em 2010 usando seu nome russo. Aqui, tirou todos os documentos que um cidadão brasileiro tem direito, com o nome de Victor, a partir da certidão de nascimento feita em 1989. E, segundo as apurações, não se tratava da certidão de alguém que existiu.
EXCLUSIVO: depoimento revela detalhes da 'fábrica' de espiões russos no Brasil
Para o presidente da Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais (Arpen-Brasil), Gustavo Fiscarelli, o que os russos fizeram no caso de Sergey "seria muito difícil hoje em dia".
Isso porque, de 1989 para cá, o registro de nascimento passou por pelo menos cinco grandes mudanças — embora a última alteração legislativa ainda tenha deixado brechas.
Veja a cronologia abaixo:
Iniciativa em 1990
"Até 1990, para fazer um registro, o pai e a mãe iam ao cartório, às vezes com o próprio filho, às vezes não, e era um ato eminentemente declaratório. Não tinha nenhum substrato, nenhum título, nenhum documento médico que atestasse que havia existido um parto e uma criança", afirma Fiscarelli.
"Muito provavelmente esses espiões se serviram dessa possibilidade, fizeram a declaração de alguém que não existia e conseguiram um registro de nascimento. Então, o Brasil nesse período pode ter servido como uma incubadora de um futuro espião", diz.
A partir de 1990, passou a ser obrigatória a apresentação de uma Declaração de Nascido Vivo (DNV) para registrar um nascimento. A DNV é um documento assinado por um médico e recebe um número de série gerado pelo Ministério da Saúde, que mantém um banco com esses dados.
Em tese, a exigência da DNV teria dificultado, na origem, a fraude feita pelos russos.
Sergey Vladimirovich Cherkasov se apresentava como Victor Muller Ferreira e havia se candidatado a posto de estágio não remunerado no Tribunal Penal Internacional. Ele é suspeito de ser espião russo.
Departamento de Justiça dos Estados Unidos/ Reprodução
Padronização entre os estados
Até 2009, cada estado emitia uma certidão de nascimento de um jeito. Uns tinham papel de segurança, outros faziam em folha de sulfite.
Naquele ano, houve uma padronização em todo o país. Os cartórios foram obrigados a adotar um modelo único com elementos de segurança e com os mesmos campos de informação para serem preenchidos.
Leia também:
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Fábrica de espiões: quem são os agentes russos acusados de se passar por brasileiros
Funcionários de cartórios nos hospitais
Em 2010, a partir de uma norma do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), funcionários dos cartórios começaram a trabalhar dentro dos hospitais e das maternidades de todo o Brasil, copiando um projeto-piloto que havia sido adotado em São Paulo em 2008.
"No momento em que a criança nasce, coleta-se a manifestação da mãe para o registro ainda no hospital. Ela sai do hospital com a certidão na mão, com o filho registrado. Essa é uma realidade absolutamente consolidada hoje", explica Fiscarelli.
Cartórios interligados
Em 20215, os cartórios de todo o país foram interligados em uma plataforma eletrônica, o que se tornou possível com o avanço da internet.
Essa plataforma permite aos funcionários dos cartórios consultar a numeração de uma Declaração de Nascido Vivo (DNV) para saber se ela já foi utilizada em outro registro de nascimento. Se tiver sido, o sistema trava e impede o novo registro.
Com isso, ficou difícil de uma pessoa ter duas certidões de nascimento — o que antigamente era comum, quando, por exemplo, a mãe não gostava do nome escolhido pelo pai ou vice-versa.
A existência dessa plataforma nacional também melhorou a segurança para a emissão dos RGs, realizada pelos Institutos de Identificação dos estados.
As carteiras de identidade, via de regra, são feitas a partir da apresentação da certidão de nascimento.
"A checagem [da certidão de nascimento] hoje é feita é via CRC, que é o sistema de cadastro de certidões. O Instituto de Identificação joga no sistema, verifica se a certidão existe, bate os dados e, só aí, faz a liberação do documento de identidade", explica o delegado Raphael Zanon, da primeira delegacia especializada em fraudes biométricas de São Paulo.
CPF na certidão
Por meio de uma nova norma do CNJ, passou a ser obrigatório incluir o número do CPF na certidão de nascimento. A mudança é vista pelos registradores dos cartórios como "um marco muito importante".
"Antes, você saía do cartório com a certidão de nascimento e ia à Receita tirar o CPF. Nesse meio tempo ocorriam as fraudes. Nós trouxemos a Receita para dentro dos cartórios. A partir de 2017, quando você registra um nascimento, já sai com o CPF. Você já sai contribuinte", diz Fiscarelli.
O número do CPF na certidão de nascimento tende a dificultar duplicidade e fraudes.
2022, nova lei e uma brecha
A Lei nº 14.382, que trata do Sistema Eletrônico dos Registros Públicos (Serp), foi sancionada em junho de 2022. Os cartórios pressionaram os parlamentares para que o texto lhes garantisse acesso aos bancos de dados biométricos (impressões digitais) mantidos por órgãos públicos, como o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), mas não tiveram sucesso.
Para entender o motivo dessa pressão dos cartórios é preciso saber que existem dois tipos de registro de nascimento:
o regular, feito em até 15 dias após o parto;
e o tardio, feito depois desse prazo.
Antigamente, o registro de nascimento tardio só podia ser realizado com a autorização de um juiz. Em 2013, foi regulamentado o procedimento para que os próprios cartórios façam o registro tardio de nascimentos, sem passar pela via judicial.
Segundo Fiscarelli, quando o registro tardio é feito para uma criança que não tem a Declaração de Nascido Vivo (DNV) — por ter nascido em casa, por exemplo —, a regra prevê que os pais levem ao cartório duas testemunhas que tenham acompanhado a gestação ou o parto.
Nesses casos, o próprio funcionário do cartório elabora a DNV e faz o registro de nascimento.
O problema é quando quem pede o registro tardio é um adulto, que alega nunca ter tido documentos e vai ao cartório desacompanhado dos pais — cujas identidades não poderão ser verificadas.
É nesses casos que os representantes dos cartórios queriam poder coletar as impressões digitais para cruzá-las com os bancos de dados biométricos do TSE ou da Polícia Federal, com a finalidade de saber se aquela pessoa já tem algum outro registro.
A lei de 2022, porém, tratou esse pleito dos cartórios como uma mera "possibilidade", e não uma obrigação.
De acordo com Fiscarelli, essa "possibilidade" de checagem biométrica pelos cartórios não existe na prática, o que, ainda hoje, abre espaço para os fraudadores.
"O problema continua nos registros tardios", aponta o delegado Raphael Zanon.
Foi com ela que russos como Sergey Cherkasov, que viveu por mais de dez anos com o nome de Victor Muller Ferreira, conseguiram tirar RG, CPF e, a partir daí, abrir empresas, estudar e obter passaporte.
Semelhante a outros espiões que assumiram identidades brasileiras para daqui viajar para seus países-alvos, como os EUA, Sergey tinha uma certidão de nascimento autêntica, mas com um nome inventado.
O documento havia realmente sido registrado em um cartório brasileiro — no caso dele, no Rio de Janeiro, em 1989.
Segundo o New York Times, a suspeita de investigadores brasileiros é que agentes da extinta KGB, o serviço secreto da antiga União Soviética, podem ter registrado nascimentos de bebês fictícios no final dos anos 1980 para, no futuro, essas certidões serem usadas por espiões.
Ainda não há confirmação oficial de que essa hipótese ousada seja mesmo a verdadeira.
O fato é que Sergey, por exemplo, chegou no Brasil em 2010 usando seu nome russo. Aqui, tirou todos os documentos que um cidadão brasileiro tem direito, com o nome de Victor, a partir da certidão de nascimento feita em 1989. E, segundo as apurações, não se tratava da certidão de alguém que existiu.
EXCLUSIVO: depoimento revela detalhes da 'fábrica' de espiões russos no Brasil
Para o presidente da Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais (Arpen-Brasil), Gustavo Fiscarelli, o que os russos fizeram no caso de Sergey "seria muito difícil hoje em dia".
Isso porque, de 1989 para cá, o registro de nascimento passou por pelo menos cinco grandes mudanças — embora a última alteração legislativa ainda tenha deixado brechas.
Veja a cronologia abaixo:
Iniciativa em 1990
"Até 1990, para fazer um registro, o pai e a mãe iam ao cartório, às vezes com o próprio filho, às vezes não, e era um ato eminentemente declaratório. Não tinha nenhum substrato, nenhum título, nenhum documento médico que atestasse que havia existido um parto e uma criança", afirma Fiscarelli.
"Muito provavelmente esses espiões se serviram dessa possibilidade, fizeram a declaração de alguém que não existia e conseguiram um registro de nascimento. Então, o Brasil nesse período pode ter servido como uma incubadora de um futuro espião", diz.
A partir de 1990, passou a ser obrigatória a apresentação de uma Declaração de Nascido Vivo (DNV) para registrar um nascimento. A DNV é um documento assinado por um médico e recebe um número de série gerado pelo Ministério da Saúde, que mantém um banco com esses dados.
Em tese, a exigência da DNV teria dificultado, na origem, a fraude feita pelos russos.
Sergey Vladimirovich Cherkasov se apresentava como Victor Muller Ferreira e havia se candidatado a posto de estágio não remunerado no Tribunal Penal Internacional. Ele é suspeito de ser espião russo.
Departamento de Justiça dos Estados Unidos/ Reprodução
Padronização entre os estados
Até 2009, cada estado emitia uma certidão de nascimento de um jeito. Uns tinham papel de segurança, outros faziam em folha de sulfite.
Naquele ano, houve uma padronização em todo o país. Os cartórios foram obrigados a adotar um modelo único com elementos de segurança e com os mesmos campos de informação para serem preenchidos.
Leia também:
Discreto, bem comportado e leitor voraz: a vida do espião russo preso em Brasília
Fábrica de espiões: quem são os agentes russos acusados de se passar por brasileiros
Funcionários de cartórios nos hospitais
Em 2010, a partir de uma norma do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), funcionários dos cartórios começaram a trabalhar dentro dos hospitais e das maternidades de todo o Brasil, copiando um projeto-piloto que havia sido adotado em São Paulo em 2008.
"No momento em que a criança nasce, coleta-se a manifestação da mãe para o registro ainda no hospital. Ela sai do hospital com a certidão na mão, com o filho registrado. Essa é uma realidade absolutamente consolidada hoje", explica Fiscarelli.
Cartórios interligados
Em 20215, os cartórios de todo o país foram interligados em uma plataforma eletrônica, o que se tornou possível com o avanço da internet.
Essa plataforma permite aos funcionários dos cartórios consultar a numeração de uma Declaração de Nascido Vivo (DNV) para saber se ela já foi utilizada em outro registro de nascimento. Se tiver sido, o sistema trava e impede o novo registro.
Com isso, ficou difícil de uma pessoa ter duas certidões de nascimento — o que antigamente era comum, quando, por exemplo, a mãe não gostava do nome escolhido pelo pai ou vice-versa.
A existência dessa plataforma nacional também melhorou a segurança para a emissão dos RGs, realizada pelos Institutos de Identificação dos estados.
As carteiras de identidade, via de regra, são feitas a partir da apresentação da certidão de nascimento.
"A checagem [da certidão de nascimento] hoje é feita é via CRC, que é o sistema de cadastro de certidões. O Instituto de Identificação joga no sistema, verifica se a certidão existe, bate os dados e, só aí, faz a liberação do documento de identidade", explica o delegado Raphael Zanon, da primeira delegacia especializada em fraudes biométricas de São Paulo.
CPF na certidão
Por meio de uma nova norma do CNJ, passou a ser obrigatório incluir o número do CPF na certidão de nascimento. A mudança é vista pelos registradores dos cartórios como "um marco muito importante".
"Antes, você saía do cartório com a certidão de nascimento e ia à Receita tirar o CPF. Nesse meio tempo ocorriam as fraudes. Nós trouxemos a Receita para dentro dos cartórios. A partir de 2017, quando você registra um nascimento, já sai com o CPF. Você já sai contribuinte", diz Fiscarelli.
O número do CPF na certidão de nascimento tende a dificultar duplicidade e fraudes.
2022, nova lei e uma brecha
A Lei nº 14.382, que trata do Sistema Eletrônico dos Registros Públicos (Serp), foi sancionada em junho de 2022. Os cartórios pressionaram os parlamentares para que o texto lhes garantisse acesso aos bancos de dados biométricos (impressões digitais) mantidos por órgãos públicos, como o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), mas não tiveram sucesso.
Para entender o motivo dessa pressão dos cartórios é preciso saber que existem dois tipos de registro de nascimento:
o regular, feito em até 15 dias após o parto;
e o tardio, feito depois desse prazo.
Antigamente, o registro de nascimento tardio só podia ser realizado com a autorização de um juiz. Em 2013, foi regulamentado o procedimento para que os próprios cartórios façam o registro tardio de nascimentos, sem passar pela via judicial.
Segundo Fiscarelli, quando o registro tardio é feito para uma criança que não tem a Declaração de Nascido Vivo (DNV) — por ter nascido em casa, por exemplo —, a regra prevê que os pais levem ao cartório duas testemunhas que tenham acompanhado a gestação ou o parto.
Nesses casos, o próprio funcionário do cartório elabora a DNV e faz o registro de nascimento.
O problema é quando quem pede o registro tardio é um adulto, que alega nunca ter tido documentos e vai ao cartório desacompanhado dos pais — cujas identidades não poderão ser verificadas.
É nesses casos que os representantes dos cartórios queriam poder coletar as impressões digitais para cruzá-las com os bancos de dados biométricos do TSE ou da Polícia Federal, com a finalidade de saber se aquela pessoa já tem algum outro registro.
A lei de 2022, porém, tratou esse pleito dos cartórios como uma mera "possibilidade", e não uma obrigação.
De acordo com Fiscarelli, essa "possibilidade" de checagem biométrica pelos cartórios não existe na prática, o que, ainda hoje, abre espaço para os fraudadores.
"O problema continua nos registros tardios", aponta o delegado Raphael Zanon.
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